Notícias de uma mente em colapso: vivemos uma onda de desconcentração
O leitor já o terá lido em algum lugar, mas eu insisto, porque é bem provável que não o saiba mais. Estamos vivendo uma onda de desconcentração, uma incapacidade crescente de atentar a um único assunto pelo tempo necessário, uma forte tendência ao alheamento e à dispersão. Me permito uma suposição inverificável: que nunca antes tantos caminhos foram abandonados por já não se saber aonde se vai, tantas mensagens foram escritas pela metade, tantas panelas foram largadas ao fogo, tantos gestos se dissolveram em pleno ar, tantas carícias se perderam em devaneio, tantas ideias foram concebidas e então esquecidas de imediato. Nossa mente entrou em colapso, e não o percebemos porque nossa mente entrou em colapso.
Esse defeito inaudito talvez seja a contraface de uma virtude das mais prezadas: a capacidade crescente de dividir atenções, de lidar com muitas demandas simultâneas, de realizar tarefas díspares num mesmo instante largo. Não é que tenhamos nos tornado menos eficientes, menos hábeis. Em tudo o que nos exige comunicação e agilidade talvez nunca tenhamos sido tão funcionais: somos, por vezes, trabalhadores exemplares. O problema vem à tona quando se procura uma virtude contrária, quando se deseja a contemplação serena, o olhar agudo, a apreciação exata. Nossas novas faculdades mentais são valiosas, mas pouco propícias ao descanso, à lucidez, à profundidade, à arte.
Não acuso ninguém, muito mais me ponho a admitir minha própria dificuldade. Já fui um desses homens inaptos à multiplicidade, infensos à simultaneidade, e por isso me julgavam distraído, alheio ao mundo que me cercava. Então me fiz adulto, me fiz pai, e fui respondendo aos apelos incessantes de uma rotina inviável que procura conciliar trabalho e mundo e casa e riso e palavra. Por um tempo me orgulhei de, num só compasso, brincar com as minhas filhas, preparar o almoço, responder mensagens inumeráveis, pensar o livro que eu escreveria mais tarde. Depois descobri que aquilo não era brincar, que o feijão ficava ralo, que o livro apenas se adiava. E me bateu uma inconfessável saudade do tempo em que eu era distraído, isto é, concentrado, do tempo em que eu sabia pensar.
Este texto foi quase todo concebido durante um banho, uma dessas raras circunstâncias em que os olhos vagueiam livres sem dar atenção a nada, sem sofrer o assédio de uma realidade irrefreável. São momentos privilegiados, cada vez mais escassos num cotidiano densamente povoado de imagens e sentidos. E, no entanto, como minha mente já é incapaz de escapar da multiplicidade, enquanto ia delineando sem precisão as noções que aqui trago, também preparava a aula da próxima terça e buscava palavras sensíveis para responder a um amigo que me escrevera agoniado. Tudo acontecia ali em incompletude, tudo era tênue, vago, tudo existia em meio à névoa de vapor que tomava o espaço.
De algum lugar enevoado da memória me vem à cabeça João Cabral de Melo Neto, que se recusava a anotar de imediato as ideias que o acometiam, preferindo deixar que descansassem. Acreditava evitar assim as banalidades, as formulações falsas, as evocações plagiárias. É uma conduta sagaz, sim, mas penso que impossível nos tempos atuais, em que cada mísera ideia se vê afogada por informações infindáveis, e os pensamentos já não existem senão por um átimo, correndo o risco de se dissiparem sem deixar rastro. Talvez em nossa época seja mais sensato o ímpeto contrário, anotar cada pensamento antes que evapore, para só mais tarde avaliar seu valor ou sua inutilidade - embora contribuindo assim, fatalmente, para o excesso de palavras que nos acossam num mundo já saturado.
Foi com essa preocupação que resolvi salvar aquelas precárias noções fabricadas no banho, gravando-as em áudios sucessivos que mandei para mim mesmo, enquanto dirigia para buscar as minhas filhas na escola e também terminava de repassar a aula que daria dali a duas horas, quando as deixasse em casa. No último dos áudios surgia a conclusão inevitável: que os pensamentos que agora exponho trazem as marcas dessas circunstâncias, incapazes de transcender sua origem descontínua e fatigada. Ou talvez se possa extrapolar o caso: que tudo o que hoje pensamos e produzimos, tudo o que criamos neste tempo ruidoso e acelerado, traz as marcas dessa condição porventura insuperável, dessa existência mental em constante estado de precariedade.
E, no entanto, ainda é possível escrever algo, ainda há raciocínios que se deixam encadear, ainda há textos que alcançam, quase por milagre, o último parágrafo. Daqui deste lugar de algum alívio e alguma serenidade, me vejo levado a advogar em nome de algo, a defender quixotescamente a concentração, a precisão, a profundidade, o apreço pelo pensamento focado. Entre as tantas lutas necessárias do nosso tempo, entre as tantas urgências, essa decerto não será a menor, não será a mais irrelevante, porque fala da exata matéria de que são feitas as nossas ideias.
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